Uma visão artística do Apocalipse
Jogos muitas vezes são melhores em transmitir o horror do que a maioria das outras mídias, devido a necessidade de nossas respostas diretas em tempo real para que a progressão seja possível.
"Nós impomos a ordem sobre o caos da vida orgânica. Você existe porque nós permitimos, e vai morrer pois o exigimos." Estas são as palavras de Sovereign, o primeiro reaper que você encontra na trilogia Mass Effect. A partir deste momento, você descobre que toda a existência foi essencialmente guiada por essas criaturas "divinas". E, por algum motivo além da compreensão dos meros mortais, eles estão voltando para acabar com o que permitiram que se desenvolvesse - toda a vida inteligente e avançada da galáxia.
A trilogia inteira nos prepara para a guerra contra tais seres que são mais poderosos do que qualquer coisa imaginável, uma vez que eles repetiram esse ciclo (esperar o desenvolvimento de civilizações avançadas e extermina-las. para então voltar para o espaço profundo) incontáveis vezes - sempre obtendo sucesso.
Basicamente os "deuses" querem que toda a vida acabe. Isso não é o niilismo escrito nas estrelas - é o corredor da morte em uma escala cósmica - uma vez que tudo caminha para a guilhotina. Combater tal destino é fútil; como Harbinger coloca em Mass Effect 2, a resistência mortal se assemelha a "poeira lutando contra ventos cósmicos." A totalidade da existência é pouco mais do que uma fazenda de formigas para deuses indiferentes.
A animosidade cósmica para com a criação encontra uma nova reviravolta na série Dragon Age.
De acordo com a religião dominante na série (a chantry, uma analogia à igreja católica medieval), o Criador é a divindade toda poderosa que se afastou de suas criações, uma vez que cinco grandes magos do império Tevinter (analogia ao império romano) cometeram o pecado mais hediondo ao adentrarem no santo espaço do Criador, a Cidade Dourada, para tentar usurpar seu trono e restaurar a antiga glória do império. Devido a isso e ao "pecado do orgulho", eles fundamentalmente macularam a cidade do Criador, transformando-a na Cidade Negra.
O que antes era um espaço para o Criador e a vida após a morte para os fiéis da chantry se tornou corrupção, devido ao orgulho mortal e a ganância. Céu, então, tornou-se inferno.
O Criador amaldiçoou os magos, tornando-os Darkspawn, a fonte do mal que paira sobre grande parte da série, após seu regresso ao mundo mortal. Desde então o criador não responde a nenhuma oração e não concede desejos; ele é um deus indiferente às suas criações, efetivamente punindo todos pelos pecados de poucos.
Essa ideia de deuses todo poderosos é presente tanto nas franquias supra mencionadas da BioWare como em outros jogos e universos (The Witcher, Senhor dos Anéis, Assassin's Creed - a lista é grande!). Os Reapers destróem pois foram designados para isso, enquanto o Criador o faz por conta da ganância de suas ingratas criações. O Criador é Victor Frankenstein, enquanto os Reapers são crianças equipadas com lupas lidando com insetos.
Não há conforto a ser encontrado nessa ideia de divindades ou deuses. Tais jogos se afastam dos ensinamentos de um Deus amoroso, ou pelo menos tolerante, como é na maioria das religiões reais e se apegam apenas ao lado apocalíptico da coisa.
Tais histórias também descartam a ideia do ateísmo. O ateísmo é a crença de que deuses não existem. Como ateu você é cético, devendo confrontar um universo indiferente. Se não há nenhum deus respondendo orações ou concedendo desejos, somos livres para criar um mundo em que gostaríamos de viver ou para sermos egoístas sem o perigo de uma retribuição divina futuramente.
Enquanto o religioso tenta encontrar respostas e paz nos braços de um Deus amoroso, os ateus podem encontrar poder e moralidade na ideia de que se isso é tudo que existe, um objetivo digno seria torná-lo habitável e justo ou se aproveitar da vida ao máximo que puder sem pensar em karma. Ambas as formas de pensar tem o objetivo de gerar algum conforto para nossa inquieta e misteriosa existência.
O interessante é que nos dois jogos mencionados, há uma visão terrível de um universo com divindades. Eles apontam para o céu e dizem que não só Deus existe, como ele tem poderes palpáveis. Você não será salvo por qualquer intervenção externa. Na melhor das hipóteses, os deuses destes mundos são indiferentes. Na pior, a nossa destruição final.
Dragon Age pelo menos nos traz alguma esperança. Foi a ação humana que levou ao antagonismo do Criador; mas também é a ação humana que pode reconquistar seu favor como é revelado ao longo do jogo:
"A Profeta Andraste ensinou que o mal existe por conta do orgulho da humanidade. Por tal razão, o mundo trouxe os darkspawn sobre si mesmo. Quando o Criador retornar, ele destruirá todo o mal."
Embora esta linguagem de vítima e culpa seja uma analogia a muitos dos mitos de criação de nossa história (humanos que enfurecem a Deus ou deuses e sofrem com banimentos, inundações, pragas e etc.), ela coloca a esperança nas mãos de mortais. O tropo "Devil But No God" é enraizado nessas histórias, passando a ideia de que mortais, como nós, podemos superar obstáculos aparentemente impossíveis.
Independentemente do quão difícil é a nossa luta, o ponto é que algum tipo de salvação é alcançável por meros mortais.
No entanto, eu não consigo parar de pensar na futilidade temporal disso tudo: Quanto tempo a existência vai durar? Qual o sentido de tudo que já sentimos e aprendemos? Para que continuar lutando? Estas são questões que o Comandante Shepard (Mass Effect) e o Inquisitor (Dragon Age: Inquisition) precisam enfrentar. O melhor que podemos fazer seria externar o que há de bom em cada um de nós para inspirar aos outros ao nosso redor a também desenvolverem o melhor deles, criando uma existência em sociedade paradigma.
A BioWare criou universos aterrorizantes que vão além dos nossos conceitos divinos, transformando algo poderoso e oculto em realidade, no sentido de que se acreditamos em divindades, sabemos que estamos sendo constantemente observados e julgados por uma força maior. O verdadeiro medo tem suas origens no que nos é desconhecido.
A aparente impossibilidade de uma resposta me deixa inquieto - a possível futilidade disso tudo. Eu admiro o ideal de Shepard, que lutou tanto e por tanto tempo, contra algo que é ridiculamente poderoso mas, ao mesmo tempo, reflito se valeria a pena na vida real. Eu não conseguiria entender o ponto de viver num mundo como Thedas, de Dragon Age, onde meu próprio Criador me quer o mal.
Possuir a dúvida sobre a existência de um poder superior é preferível a saber com certeza que esse ser todo poderoso existe e quer incendiar tudo o que criou, como algumas vozes teológicas pregaram e pregam ao longo de nossa história. A ignorância pode ser uma benção.
O que acredito é que existimos sim por algum motivo além do mero acaso. Tudo o que fazemos, aprendemos, vivemos e sentimos não deve ser descartado apenas com a nossa morte. A ideia biológica de nascer, comer, reproduzir e morrer não explica nossa complexidade cerebral, a possibilidade de um texto como este ser escrito, o amor e a dor que nossos corações são capazes de sentir e o sentimento de paz único ao fazermos o bem para outra pessoa.