quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Crítica Literária - O Último Desejo


O Último Desejo é uma pequena coleção (318 páginas) de seis histórias vagamente conectadas por intervalos de tempo estreladas por Geralt. Originalmente lançado em 1993, na Polônia como Ostatnie Zyczenie, O Último Desejo contém alguns dos mais antigos dos contos de Geralt, embora não tenha sido o primeiro livro relacionado a esse mundo fantasioso imaginado por Andrzej Sapkowski. É, no entanto, uma excelente introdução ao personagem e ao tipo de história que Sapkowski quer contar.



Geralt é um Witcher (bruxo), um ser humano alterado, que sofreu mutações artificiais e que tem a visão aprimorada, um rápido mecanismo de cura/recuperação do seu corpo, e, supostamente, é imune à maioria das emoções humanas normais (embora algumas de suas interações com diversos personagens desmente essa afirmação). Por conta dessas alterações, Geralt é visto como uma aberração nojenta por alguns e sofre muito preconceito. Como bruxo, a tarefa de Geralt é a de vagar pelos campos e cidades, procurando e destruindo monstros para proteger os seres humanos em um mundo medieval fantástico e muito original. Embora isso possa soar um pouco como O Senhor dos Anéis, Sapkowski combina, de forma brilhante e rápida, inteligência e uma tendência a não apenas subverter esses tropos de aventura, mas torcê-los e fazê-los rodar na sua cabeça até entrarem em colapso, tornando-se experiências literárias memoráveis: não existe bem e mal definido e analogias realistas são feitas com o mundo real.

Apesar de Geralt ter sido treinado como um assassino e ter algumas habilidades impressionantes como um guerreiro, a violência não é o foco dessas histórias. Pelo contrário, este parece ser dois grandes temas envolvendo esses contos: a superação de primeiras impressões e a noção de que os monstros verdadeiros podem ter uma aparência graciosa e falar de forma bonita e convincente. Geralt discorre sobre isso em uma cena:
"Aos homens agrada inventar monstros e monstruosidades. Com isso, sentem-se menos monstruosos. Quando se embriagam, são capazes de trapacear, roubar, bater na esposa, deixar morrer de fome a velha vovozinha, matar a machadadas uma raposa pega numa armadilha ou ferir com flechas o último unicórnio do mundo. Nessas horas, gostam de pensar que a Moahir (uma espécie de demônio), que adentra suas choupanas de madrugada, é muito mais monstruosa do que eles. Aí, ficam com o coração mais leve e acham mais fácil tocar a vida adiante."
Cada um dos contos tem momentos como esse, momentos em que Geralt mostra que sua maior virtude não está no quão rápido ele pode decapitar um monstro (embora ele faça isso de vez em quando) ou quão rápido ele pode fugir de um ataque (isto também ocorre em algumas ocasiões), mas sim na forma como ele é capaz de dar uma olhada mais aguçada do que os seus companheiros (por sinal, os coadjuvantes deste livro são sensacionais) no mundo ao seu redor e no que realmente está em jogo. Há momentos de humor extremamente inteligente no livro, como quando um monstro, Nivellen, descobre que sendo generoso com o seu ouro, pode barganhar algumas filhas de comerciantes pagando um pouco mais do que o fazia pelo habitual rolo de feno. A forma que Geralt lida com Nivellen é uma das histórias mais humanas e compreensivas que eu já li neste gênero de livro, mas deixarei a conclusão para você leitor(a).

Há muitos elementos da mitologia eslava, desde várias criaturas que não possuem análogos exatos em mitologias ocidentais até códigos de comportamento, os quais tornam esta coleção um pouco mais misteriosa para mim. Eu suspeito que algumas passagens seriam engraçadas a um polonês ou a uma pessoa do leste europeu, mas que foram tomadas mais literalmente por pessoas como eu, nascido e criado no ocidente, lendo livros de procedência ocidental em sua maioria e tendo a noção mitológica grega como base fantasiosa. Talvez esta seja a principal razão pela qual, apesar de vender mais de dois milhões de cópias de seus trabalhos em alguns países europeus, Sapkowski teve de esperar quase 20 anos para a primeira publicação em língua inglesa do seu trabalho. A tradução brasileira foi muito bem feita, tão bem feita que é útil, de forma quase imperativa, deixar o dicionário ao alcance ao ler esta obra.

Conclusão


O Último Desejo é uma série de histórias curtas interligadas e o primeiro livro de sete, que contam as aventuras de um bruxo chamado Geralt. Contada por uma terceira pessoa onisciente, estes contos utilizam as aventuras fantasiosas tradicionais e brincam com elas de uma forma paródica em ocasiões. Altamente recomendado para quem gosta de uma mistura de humor e profundidade, especialmente para quem gosta de um livro para se refletir e pensar por um bom tempo.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Elucubração Amorosa


Em uma noite auspiciosa resolverei sair pra balada e encontrarei o amor da minha vida - amor este que se diferirá daquele recorrente de uma típica brincadeira que meus amigos bem conhecem.

No momento em que entro na fila ela me notará, ficando meio embaraçada com a súbita troca de olhares, como se tivesse sido surpreendida por algo, e como se quisesse dizer alguma coisa diante de aprazível surpresa, mas não tivesse coragem.

Conversando com amigos, sentirei a vontade de olhar novamente para ela, meio de rabo de olho, como se também quisesse dizer alguma coisa, mas por algum motivo minha afoiteza característica não estará comigo. E assim, sem palavras, a gente dirá muita coisa ao outro.


Essa música começará a tocar.

Já dentro da balada, ela me olhará do alto da escada. Retribuirei o olhar, deixando-a tímida. Sem jeito, ela desviará o olhar e voltará a atenção para as amigas. Subirei a escada como se estivesse procurando algo, quando na verdade estarei procurando alguém. Entrarei na sala e irei até um espaço mais vazio. Fingirei estar me livrando da multidão com o intuito de ver se ela aparece para que eu finalmente possa puxar assunto de forma mais confortável, sem pessoas ao redor. Sou leonino e não gosto de dividir atenção nessas horas. Caso fosse um fumódromo e eu fumasse, acenderia um cigarro para conter a terrível ansiedade. Não será o caso.

Mesmo depois da espera, ela não virá ao meu encontro e apesar do motivo ser óbvio, eu não entenderei. Já desistindo, eu sairei da sala e irei ao bar, com o intuito de pegar uma cerveja e reencontrar os meus amigos. Quando finalmente o bartender atender a última pessoa antes de mim, uma figura furará a fila descaradamente. Ficarei indignado com a mulher, mas logo perceberei que é a mulher. Resolverei poupá-la de teorias éticas de balada, porque alguma coisa de peculiar deve haver para nos cruzarmos fisicamente, após nossos olhares já o terem feito anteriormente como tácita função fática. Não poderia ser simplesmente eu chegar nela num canto qualquer e dizer: e aí guria, qual teu nome, vamos dançar? Simplesmente não funcionaria. O encontro com o amor da vida tem que ser algo meio bizarro, esdrúxulo e quase irônico, levando em consideração que tal atitude normalmente me irritaria, mas não vindo dela.

Riremos um da cara do outro, pois ela perceberá que eu não me incomodei, como ela imaginava. Ela pegará sua bebida e olhará para trás. Subitamente nessa hora minha vontade de pegar uma cerveja passará, convencendo-me de que a bebida às vezes nada mais é que mero pretexto para os chamados da psiquê. Psi... o que mesmo?

Notando que ela deixou de lado sua timidez inicial, serei caloroso em minhas palavras e puxarei papo. Nos deslocaremos para um local mais apropriado e lá teremos uma longa conversa: descobrirei que ela está se formando em algum curso interessante, do qual não possuirei conhecimento algum, sendo oportunidade para demonstrar legítimo interesse e aprender uma coisa ou outra. Descobrirei que conhecemos pessoas em comum e soltaremos quase que de forma uníssona o clássico: "não acredito que você conhece tal pessoa!" , que moramos não muito longe um do outro, que ela também gosta de correr no final da tarde, ama comida japonesa e é fascinada por história, cinema e literatura, que ela se diverte indo a baladas da boa música eletrônica e que ela adoraria fazer uma tatuagem nas costas e outra na costela. Aproveitarei para sugerir um tatuador amigo e conversar sobre alguns símbolos e ideologias com o intuito de dar ideias para o desenho. E depois de saber tudo, ou quase tudo, não teremos coragem de perguntar o nome um do outro. Será como se já o soubéssemos.

Depois dessa conversa que durará horas com força de minutos, sentaremos num sofá vendo as pessoas indo e vindo e, num misto de tédio e oportunidade, iremos nos entreolhar procurando respostas para um silêncio eloquente que nos formulará a famosa pergunta silenciosa: e aí? E aí nos beijaremos e nos sentiremos por tempo o bastante para percebermos que a resposta não poderia ser mais certa.

Nós conversaremos mais, mais e mais, num ciclo aparentemente infinito de assuntos. Pegarei seu telefone e mandarei uma mensagem no whatsapp depois do almoço do dia seguinte. Combinaremos de sair e ficaremos mais e mais vezes e em breve nos descobriremos apaixonados. No entanto, perceberemos ser uma paixão diferente da que ambos sentimos até então. Iremos a vários shows legais de artistas que ela gosta e de bandas adolescentes das quais serei eternamente fã. Pediremos um ao outro em namoro na fila do bar, talvez o mesmo bar daquela balada. Conhecerei a família dela e descobrirei que seus pais e irmãos, até então muito ciumentos, gostaram do papo e me elogiaram para ela.

Após um tempo, compraremos um apartamento juntos e para lá nos mudaremos. Daremos uma festa de casamento muito boa, com músicas escolhidas a dedo e nossos queridos amigos da vida inteira nos prestigiando. Trocaremos alianças bebendo champagne. Viajaremos em lua de mel pelo Japão, na primavera. Almoçaremos num restaurante típico e afastado, conversando sobre o quão belas são as cerejeiras, o que nos fará refletir sobre a perfeição da vida. Olharemos um para a cara do outro como dois bobos. Se estivermos sérios, riremos. Se já estivermos rindo, riremos de novo por já estarmos rindo.

Teremos filhos(as) lindos e por eles, para eles e por nós teremos trabalho, mas o de nossos sonhos. Teremos também cumplicidade. Teremos brigas, só para que de vez em quando sintamos a medida da realidade e lembremos que ainda formamos um casal, uma família. E teremos reconciliação, para nos convencermos de que somos mais fortes e que os desafios da vida só terminam com a morte.

Envelheceremos juntos e zoaremos os primeiros fios de prata na cabeça um do outro, quando o primeiro se sobressair na alvura do travesseiro e despertar-nos da maravilhosa loucura chamada juventude.

Já na meia idade, tomaremos chá de lichia ao conversar com nossos filhos sobre seus planos de vida, incentivando-os a fazer o que amam. Viajaremos para diversos países da Europa e nos deliciaremos com um chocolate quente de um bistrô enquanto neva lá fora, tornando o dia cinza e belo. Prepararemos juntos o jantar, pois ficaremos cansados depois de um longo dia de caminhadas e, após ficarmos hipnotizados ao vislumbrar uma aurora boreal no teto do mundo, dormiremos sob o cobertor, abraçados, pois o frio da neve servirá como escusa para estarmos mais próximos.

No dia seguinte eu acordarei primeiro e ficarei contemplando sua beleza e acariciando sua nuca macia e suas belas costas de pele lisa, admirando a tatuagem que fora escolhida depois de tanto conversarmos naqueles tempos longínquos. Refletirei sobre como foi possível aprender tanto com uma pessoa e o quanto ela esteve presente na minha vida.

E na hora da morte, fato que invariavelmente virá, terei a certeza de que ela foi o amor de cada um dos meus dias, do primeiro em que a conheci numa fila qualquer até o último em que com ela estive. E então, somente então, como de fato parece ser o conceito de "amor da sua vida", descobrirei que foi ela o meu.

Só não sei seu nome, ainda.