domingo, 1 de março de 2015

E se o propósito do amor for o de nos livrar dos relacionamentos e não nos prender a eles?

No texto abaixo cito diversos outros que utilizei como pesquisa para embasar e sustentar minha opinião (você pode acessá-los clicando nas palavras grifadas em laranja).


Ultimamente venho defendendo que a humanidade está preguiçosa quando se trata de pensar e filosofar. Temos como ideais coisas que nos são ensinadas desde cedo, na infância, sobre os objetivos reais da vida e, no nosso caso aqui no Brasil, tais ideais são: nascer, crescer, estudar, trabalhar, se casar, ser "fiel", ter filhos e ensiná-los que a vida é assim e, em nenhum momento, dar uma freada no modo automático e pensar no por quê de tudo isso, de tanta repressão própria quando se trata dos nossos sentimentos quando estes fogem do que a sociedade massificada espera da gente e, principalmente, se estamos agindo em busca da nossa real felicidade.

Certa vez li numa revista que o famoso antropólogo biológico Melvin Konner perguntou a uma sala cheia de alunos de graduação qual seria o propósito do amor. De forma teatral, ele permitiu que alguns respondessem para, logo em seguida, martelar a sua verdade na cabeça de todos.

"E se o objetivo do amor não é levar as pessoas para relacionamentos, mas livrar-nos deles?", perguntou Konner, autor de mais de meia dúzia de livros sobre a natureza humana. "Pense nisso" - insistiu ele - "O amor nos faz irracionais. E o que é mais irracional (em um universo em que há certamente mais possibilidades ruins do que boas) do que deixar a segurança de uma relação já existente para se apaixonar por outra pessoa?"

A pergunta de Konner, como uma questão filosófica e moral, não pode ser respondida pela ciência. No entanto, a ciência, especificamente a antropologia biológica, pode nos dizer como e, mais importante, por que os seres humanos tendem a agir da maneira que fazemos quando nos apaixonamos.

S.O.S. Amor


A visão ocidental tradicional de amor romântico - a qual o filósofo e Ph.D. AAron Ben-Zeév chama de Ideologia Romântica - mapeia um fênomeno que psicólogos chamam de limerência, qual seja, a felicidade inicial causada pela emoção de se apaixonar. E, enquanto a expressão da limerência no nosso dia a dia é definida pela cultura em que vivemos, o processo subjacente é antigo e evolucionário, presente em diversos mamíferos.

Apaixonar-se (ou algo parecido) foi bem caracterizado em ratos silvestres monómagos, por exemplo. Nestes animais, uma série de experimentos estabeleceram que os hormônios liberados quando duas ratazanas da pradaria acasalam - ocitocina e vasopressina - afetam seus neurônios na parte do cérebro responsável pela sensação de recompensa, sendo que o mesmo acontece com nós humanos. Incrivelmente, trata-se da mesma parte ativada quando utilizamos drogas viciantes, levando os cientistas a afirmarem que, de fato, as drogas "sequestram" esse nosso sistema que evoluiu ao longo dos milênios e que nos permite sentir o fenômeno da paixão.

Enquanto a neurobiologia do amor pode funcionar de forma análoga em humanos como ela funciona em ratazanas, nós não a entendemos tão bem como elas. Há um limite para o que essa linha de investigação pode nos dizer sobre a natureza ou o "propósito" do amor. Para obtermos respostas mais concretas, temos de olhar para as consequências do amor - coisas que são facilmente definidas e medidas. Uma das principais consequências para os seres humanos é uma tendência monogâmica, uma falsa sensação de posse combinada com um costume cultural de acreditar que não precisaremos de mais ninguém no mundo para nos satisfazer como companheiros. No entanto, basta olhar ao teu redor (ou para si mesmo) que constatará infinitos exemplos de amores que acabaram se separando, mentindo ou enganando o outro numa clara contradição ao ideal por nós concebido como verdadeiro.

A monogamia humana é um mito.


A monogamia é raríssima. Apenas cerca de 3 a 5% das espécies mamíferas catalogadas no mundo a praticam ao longo da vida, sendo ainda mais rara nas aves e répteis. Nos seres humanos ela é um pouco mais comum. No entanto, se você estudar as culturas humanas pré industriais, que até cerca de 50 anos atrás significava a maior parte das culturas do planeta, constatará que em torno de 80% delas havia algum tipo de não monogamia.

Um livro popular no exterior chamado Sex at Dawn argumenta, essencialmente, que os seres humanos viveram uma época pacífica pré ciúme poliamorosa que foi arruinada pela nuvem negra do patriarcado, agricultura (gradualmente acabando com as culturas nômades) e monoteísmo que cresceram notavelmente no final da idade clássica e início da idade média. Mas, como David P. Barash, professor de psicologia da Universidade de Washington, sustenta, a realidade é muito menos idílica. A esmagadora maioria das culturas, no passado, praticavam a poliginia, uma subespécie de poligamia em que só os homens possuem mais de um parceiro(a).

Enquanto a era Vitoriana (transição do racionalismo da era Georgiana para o romantismo e misticismo religioso) reprimiu a ideia da poligamia, pelo menos no ocidente, as taxas de divórcio atuais indicam que os seres humanos estão caminhando de volta para os grandes níveis históricos do passado em termos do número de parceiros que possuímos ao longo da vida. Nos EUA, os especialistas estimam que entre 40 e 50% de todos os casamentos terminam em divórcio (aqui no Brasil o número vem aumentando). Isso não é atípico para outros países com níveis semelhantes de renda per capita. Lembrando que tais dados não incluem a vasta gama de relações "sérias mas não oficiais" que se tornaram a norma no século XXI.

Em todas essas uniões, re-uniões, e desuniões, vemos a pegada do amor em si. Claramente algo está levando os seres humanos a mudar seu parceiro de dança com certa frequência.



Humanos tendem a ser socialmente monogâmicos em série.


Mesmo os animais que criam vínculo com um único parceiro para a vida, como a monogâmica ratazana da pradaria, realizam copulações extra conjugais que podem resultar em prole. Este tipo de comportamento é comum em algumas espécies de aves, onde uma minoria de ovos de uma ninhada colocado por uma mãe em uma relação monogâmica, muitas vezes podem ter sido fertilizados por um macho diferente de seu parceiro fixo. Os animais que tendem a ficar juntos mas que às vezes dão uma pulada de cerca são conhecidos como "socialmente monogâmicos".

Em suas palestras, Konner caracteriza o ser humano como "socialmente monogâmico em série", um aceno para o fato de que em todas as culturas da história os seres humanos tendem a manter a monogamia estrita ou meramente social com uma série de parceiros ao longo da vida, e não apenas com uma única pessoa.

O milagre aqui não é que os seres humanos são, por vezes, não monogâmicos, mas que em comparação com o resto do mundo animal os seres humanos são plenamente monogâmicos - por um período de tempo. Mais uma vez vemos evidência da natureza do amor em nós humanos - ele nos liga magicamente, mesmo que apenas por um período, sem que precisemos reprimir nossa quase constante vontade e curiosidade de conhecer pessoas novas e interessantes.

Humanos são flexíveis por natureza.


Algumas pesquisas sugerem que a tendência de possuir vários parceiros está inscrita nos genes dos homens e das mulheres. Mas a incrível diversidade de sistemas de acasalamentos criados ao longo de nossa história (desde poliginia moderna em sociedades islâmicas a monogamia forçada em sociedades com influências culturais cristãs), mostram que nossa flexibilidade cultural e psicológica nos permite certo livre arbítrio em como conduzimos nossos relacionamentos.

Como prova de nossa flexibilidade, basta olharmos para as taxas de infidelidade, que nos EUA vêm mudando para as mulheres, mas não para os homens. Isto, em parte, está ligado ao aumento do poder econômico e social das mulheres que, finalmente, vêm se libertando dessa sociedade patriarcal atrasada e adquirindo autonomia, uma vez que tanto homens como mulheres possuem, em regra, a ligação da infidelidade com poder e confiança. Como seres com o raciocínio de ordem superior e a capacidade de planejar o futuro, priorizando outras coisas que não nossos instintos primordiais mais básicos, nós somos capazes de escolher (ou sermos inconscientemente forçados a escolher por conta da forte pressão sociocultural moderna) como lidar com quase tudo de nossas vidas - eis nossa flexibilidade incrível.

Afinal de contas, qual o real propósito do amor?


Não sabemos quase absolutamente nada, no sentido evolutivo das espécies, sobre qual o real propósito do amor. Quando Konner perguntou para a classe: "Para que serve o amor?" ele quis dizer, como um antropólogo biológico, "qual é a utilidade do amor para a sobrevivência da nossa espécie?" Mas, como muitas vezes ele lembra, tais questões são inerentemente irrespondíveis, uma vez que a evolução não é um processo com o tipo de vontade ou intencionalidade que tal questão implicaria. Em seu mundo científico, pelo menos, não há nenhum criador todo poderoso que orienta o processo da longa narrativa dos seres humanos através dos milênios - não havendo tal evolução (o amor) finalidade alguma, sendo mero acaso biológico assim como nosso cérebro ultra complexo em comparação com os demais seres vivos.

Seria irrazoável supor que, no sentido de que a maioria de nós entende, um dos propósitos de amar, compatível com a ligação de duas pessoas, seria de nos deixar loucos o suficiente para nos "livrarmos" do parceiro atual e iniciarmos uma nova relação? Certamente a esmagadora evidência de nossos genes e da história das sociedades humanas é que algo está nos incentivando a se apaixonar por outras pessoas constantemente e o mais incrível é que esse mesmo mecanismo nos leva a gostar de uma pessoa particular em primeiro lugar.

Penso que nos limitamos cada vez que nos reprimimos ou mentimos para nosso parceiro com a finalidade de respondermos ao nosso instinto da paixão. Acredito piamente que é possível amar um indivíduo único e específico, mas não acredito que ao longo do tempo não conhecerei ninguém interessante que torne minha vida mais rica e tal evento, de forma alguma, implicaria na obrigatoriedade de cortar vínculos com a pessoa que amo, nem que eu a reprimiria caso ela o fizesse. De fato, acredito tanto nisso que calculo ser a única solução saudável para que relacionamentos de longuíssimo prazo não terminem em rancor, lágrimas e ódio.

Acredito, por fim, que essa sensação de posse que temos em relação ao outro, o ciúme que nos enlouquece só de imaginarmos os respectivos parceiros conhecendo ou se relacionando com alguém interessante e a mentira, venenos infinitamente mais fatais aos relacionamentos do que a aceitação do fato de que nem homem nem mulher são naturalmente monogâmicos. Portanto, acredito que o propósito real do amor em toda sua plenitude seja a superação da palavra relacionamento, que nada mais é do que a tentativa de artificializar um sentimento humano inexplicável.

Ame e deixe amar - toda experiência nos engrandece, toda repressão nos diminui.